O fundamento metodológico do pensamento de Jung numa perspectiva pós-junguiana.
- Cláudia Casavecchia

- 16 de ago.
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A psicanálise nasce simultaneamente como teoria e como clínica. (Montefoschi, 2020). Enquanto teoria, parte do pressuposto de que as patologias psíquicas têm origem nas relações do sujeito e, por isso, elabora uma compreensão da vida psicossocial do ser humano. A psique se estrutura e se transforma em contextos relacionais e históricos, o que implica que, ao definir um comportamento como patológico, a teoria também precisa propor um parâmetro do que se considera um comportamento social “normal”, assim como uma forma de pensar a relação entre indivíduo e sociedade. Enquanto clínica, a psicanálise opera igualmente no âmbito social, pois seu método central — a análise da transferência — consiste na observação de como o sujeito se coloca em relação com outro ser humano. Nesse sentido, o comportamento do analista, ao tornar-se instrumento de trabalho, evidencia que sua vivência social, suas escolhas existenciais e suas próprias respostas à problemática humana entram em jogo na prática analítica. Dessa forma, desde suas origens, a psicanálise declara uma posição sobre a relação entre indivíduo e sociedade, interferindo também no campo dos problemas sociais.
Como observa Silvia Montefoschi em Um pensamento em devir (2020), todo conhecimento é consequência do método que o orienta. No Ocidente, a tradição se baseia sobretudo em dois métodos: o objetivante e o dialético. O pensamento objetivante considera os fenômenos como dados fixos e imutáveis, definidos independentemente do observador. Já o pensamento dialético os compreende como expressões relativas ao momento da observação, inseridos em um processo contínuo de transformação. No primeiro caso, a realidade se apresenta como algo exterior e separado do sujeito; no segundo, sujeito e realidade se fundem em um processo de autotransformação recíproca.
Essas diferenças metodológicas implicam visões distintas de homem e de sociedade. O modelo objetivante tende a reduzir o comportamento humano a normas estatísticas, assumindo-as como naturais e universais, de modo que qualquer desvio aparece como patológico ou antissocial. Já o modelo dialético compreende a norma em referência ao devir histórico: o comportamento saudável não é aquele que simplesmente se conforma a uma regra fixa, mas o que consegue dialogar com as estruturas sociais, transformando-as e transformando-se a si mesmo. Aqui, o humano é concebido como capaz de criar cultura a partir de sua interação com a natureza e com a sociedade.
A psicanálise freudiana, segundo Montefoschi, nasce vinculada ao método objetivante. Freud concebe o homem como refém de sua dinâmica instintual: dominado pela oposição entre o princípio de prazer e o princípio de realidade, ele só pode viver em sociedade ao preço da repressão de seus impulsos (como exposto em O mal-estar na civilização). A liberdade do sujeito, nesse horizonte, é considerada impossível, pois a vida social implica renúncia e sacrifício.
É nesse ponto que Carl Gustav Jung retoma o problema freudiano para avançar em outra direção. Para ele, o Eu continua sendo o lugar de tensão entre pulsão e interdição, mas carrega em si a possibilidade de refletir sobre esse conflito e transformá-lo. A subjetividade torna-se, assim, o espaço da superação dialética da contradição. Em Símbolos da Transformação (1911), Jung introduz o papel do símbolo como mediador entre tendências opostas, permitindo que o instinto seja transformado em atividade criativa. A função simbólica abre caminhos para a progressiva evolução da consciência, tanto no processo individual — denominado individuação — quanto no desenvolvimento histórico da humanidade.
Montefoschi (2020) ressalta que a perspectiva dialética de Jung responde ao dilema aparentemente insolúvel colocado por Freud: liberdade individual ou civilização? Para Jung, a individuação é a chave do progresso cultural. Cada vez que um sujeito se diferencia da coletividade e percorre um caminho inédito, amplia a consciência humana e, se essa conquista é validada coletivamente, fornece o impulso necessário para o avanço da civilização. Como o próprio Jung afirmou: “todo progresso cultural é psicologicamente uma ampliação da consciência, que não pode acontecer salvo mediante uma diferenciação. O progresso começa sempre com a individuação”.
Nesse sentido, o pensamento junguiano, lido por Montefoschi, sustenta que a verdadeira saúde psíquica e social não está na adaptação passiva a normas fixas, mas na capacidade criativa do indivíduo de transformar-se e, ao fazê-lo, transformar o mundo. Assim, o fundamento metodológico de Jung, ao se enraizar no devir dialético, revela uma psicanálise que é, ao mesmo tempo, clínica, teoria e projeto ético para a humanidade em transformação.
Cláudia Casavecchia
MONTEFOSCHI, Silvia. C.G.JUNG – Um pensamento em devir. São Paulo, Biblioteca 24 horas, 2020.
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