Nas tramas do trauma
- Cláudia Casavecchia
- 1 de mai.
- 3 min de leitura
Diz Peter Levine: “A chave para curar os sintomas traumáticos em humanos está em nossa fisiologia”. Para isso, devemos explorar o funcionamento da fisiologia animal diante do perigo. Lembrando que, diante de uma situação ameaçadora, considerada fatal, o mecanismo de imobilidade será ativado automaticamente, pois faz parte do sistema primitivo de defesa instintiva. Assim, será preciso identificar tais processos neurofisiológicos e aprender a manejá-los, já que as regiões involuntárias e instintivas dos seres humanos são idênticas às dos demais mamíferos e repteis. De acordo com a teoria do cérebro trino, a anatomia cerebral consiste em três sistemas interligados:
· Cérebro reptiliano (instintivo);
· Cérebro mamífero ou límbico (emocional);
· Cérebro humano ou néocortex (racional).
Como a porção instintiva ativada durante um trauma no ser humano é equivalente à do animal, podemos aprender de que forma um impala evita a traumatização. Levine, acredita ser essa a solução para resgatar o humano de seus processos traumáticos. Contudo, ao contrário dos demais animais, para os humanos não é tão fácil resolver o seguinte dilema: lutar ou fugir, já que detemos tanto o papel de presa como o de predador.
Historicamente, vivemos por muito tempo recuados em cavernas, fugindo dos predadores. Isso está geneticamente armazenado em nossas entranhas. Sem termos garras, ou dentes enormes, nosso sistema nervoso duvida de nossa habilidade de agir de um modo que preserve a vida. Tal incerteza, nos tonou invariavelmente vulneráveis os efeitos do trauma. Os demais animais, naturalmente confiam e tem intimidade com seus recursos, tornando-os presas e predadores seguros de si.
No humano, diante de um confronto que lhe ameaça a vida, o cérebro racional tende a ficar confuso e domina os impulsos instintivos. Embora isso aconteça por uma razão compreensível, essa confusão cria o cenário favorável para o que o autor denomina: “Complexo de Medusa”, ou seja, o drama do trauma. Tal confusão, pode petrificar o homem, como acontecia no mito grego de Medusa e, congelando de medo, os efeitos da traumatização se desenvolvem e persistem.
Nossa sociedade, há gerações está permeada pelo trauma e seus efeitos: desastres naturais, epidemias, guerras, abusos, exposição a violências, escravidão, opressão, etc. Felizmente, somos também instinto e por isso, temos a real capacidade de nos resgatarmos de efeitos traumáticos complexos em nossa fisiologia e psique. Para avançarmos na compreensão desse estudo, faz-se necessário discernir entre dois conceitos: trauma e traumatização:
TRAUMA: o evento, a história, a situação de ameaça, o choque, a interação que causou a desorganização do sistema neuropsicofisiológico.
TRAUMATIZAÇÃO: resíduo de energia congelada que teve sua resposta interrompida e por isso permanece no organismo, causando danos ao corpo e à mente. Tais processos geralmente ocorrem quando somos impedidos de entrar, atravessar e sair do estado de imobilidade. Para visualizar tal dinâmica do sistema nervoso, imaginemos a seguinte situação narrada pelo autor:
“A energia no sistema nervoso de nosso jovem impala, enquanto foge do chita que o persegue, está carregada de 100 kilômetros por hora. No momento em que o chita desfere seu ataque final, o imapala cai. Externamente ele parece móvel e morto, mas internamente seu sistema nervoso ainda está carregado de 100 kilometros por hora. Embora ele esteja parado como morto, o que está acontecendo no corpo do impala é semelhante ao que ocorre em seu carro se você pisar no acelerador e no freio ao mesmo tempo. A diferença entre a corrida externa do sistema nervoso (motor) e a imobilidade externa (freio) do corpo, cria uma poderosa turbulência, semelhante a um tornado, dentro do corpo. Esse tornado de energia é o ponto focal a partir do qual se formam os sintomas de estresse traumático”.
Assim, o ser humano numa situação de ameaça, precisa descarregar toda a energia mobilizada ou se tornará vítima do trauma, já que essa carga energética residual não vai simplesmente embora. Ao contrário, ela persiste no corpo contribuindo para a expressão de diversos sintomas: ansiedade, depressão, doenças e comportamentos. Tais sintomas são uma forma de conter a energia residual que não pôde ser descarregada. Os animais selvagens, descarregam essa carga nervosa e retornam ao seu estado homeostático.
O ser humano, por ser geralmente incapaz ou impossibilitado de realizar essa descarga, torna-se vitima do trauma e busca incessantemente vias inadequadas de autorregulação: drogas, compras, alimentos, relacionamentos... sem sucesso. E até que tomem consciência do que lhes ocorreu e aprendam a identificar, reconhecer, elaborar e expressar o evento e suas consequências, permanecerão presos ao medo, à ansiedade, sentindo-se incapazes de serem livres em si mesmo e à vontade em sua própria pele.
Contudo, a mesma carga que prende o individuo ao trauma consegue ser transformada, invariavelmente o liberta e permite que essa força que o destruiu, se torne potencia criativa, expansão e sabedoria.
Cláudia Casavecchia
LEVIVE, Peter. A cura do Trauma. Summus, 1999.
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