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Análise na prática

  • Foto do escritor: Cláudia Casavecchia
    Cláudia Casavecchia
  • 17 de jan.
  • 7 min de leitura

Esse texto é um esboço didático criado para apresentar minha tese (para obtenção do título de Psicanalista), aos demais formandos.

 

“É preciso sair da ilha para ver a ilha.

Não nos vemos se não saímos de nós...”.

José Saramago

 

Apresento nesse trabalho dois conceitos: A função transcendente de Jung e o Sujeito Reflexivo de Silvia Montefoschi, comparando esses termos, a fim de compreender seu mecanismo, similaridade e também suas diferenças dentro da Psicologia Analítica e a Psicanálise Pós-Junguiana. Para chegar na compreensão desses conceitos, precisamos retomar alguns pontos fundamentais:


Estrutura da Psique


Existem dois aspectos que compõem a psique: o consciente, cujo centro é e o Eu e o Inconsciente, cujo centro é o Não-Eu ou Self. Observamos assim que a psique é constituída de maneira antinômica, com polaridades opostas entre si, como por exemplo: Eu e Sombra, Anima e Persona, Ego e Self.


Processo de individuação


Outro ponto importante é o Processo de individuação, ou seja, o caminho onde o Eu vai se descobrindo, se desenvolvendo a fim de tornar-se um ser humano cada vez mais original, potente e diferenciado da consciência coletiva.


Como ocorre esse processo?


Esse processo ocorre, quando um diálogo consciente começa a acontecer entre o Eu e o Inconsciente.


De que maneira?


Através de sintomas, através de um trauma, de uma ferida que permita uma abertura desse "Eu" para sentimentos que lhe são desconhecidos e geralmente perturbadores, onde precisamos de ajuda para compreender o que nos ocorre e como podemos transformar tais dificuldades. E então começamos um percurso analítico.


O que acontece na análise?


Começamos a dialogar com o analista, que nos auxilia a dialogarmos cada vez mais com o nosso interior. Dessa forma, ampliamos nossa percepção sobre nós mesmos paulatinamente. Começamos a percorrer e a discorrer sobre o que nos acontece e isso já é grande parte do processo, pois vai descortinando e trazendo mais e mais consciência de como e por que agimos daquele modo, de como pensamos, sentimos.


Mas há momentos em que nos deparamos com sensações muito intensas, que emergem de complexos que representam o núcleo de nossas feridas, bem como suas constelações que são as construções que criamos a partir de como vivenciamos aquele trauma e nessa trama, nossa energia vital, a libido está presa, bloqueada.

Como se libertar, se o complexo reside no inconsciente?


Primeiramente, como já citei, vamos clareando a consciência e assim, fortalecemos o Eu.

O eu aqui é fundamental, é ele o grande herói capaz de fazer a mudança. Por isso o ego não pode morrer, isso é sinônimo de adoecimento psíquico. Então, esse Eu, precisa se banhar com as águas do inconsciente, ou seja, se abrir aos conteúdos que se apresentam, ainda que sejam confusos, caóticos, dolorosos, vergonhosos, porque eles contém uma verdade e nós precisamos conscientemente elaborar essa verdade.


O que nos orienta nessa empreitada, por que todos aqui sabemos o que é ser tomadas por um complexo, por uma sensação persistente que volta sempre que um determinado gatilho é ativado e que nos paralisa e nos deixa completamente desorientados. Por que há ali um conteúdo geralmente antigo, muito carregado de energia e que não foi ainda elaborado à luz da consciência.


Então, quem nos orienta é o símbolo. É o símbolo que nos mostra a direção que precisamos percorrer rumo à libertação e ao desenvolvimento do Eu, dentro do processo de individuação. Por isso trabalhamos com os sonhos. Jung apresentou também a técnica da imaginação ativa que pode se dar de maneira espontânea quando por exemplo uma imagem nos surge em estado de vigila e traz sentido aquilo que estamos experimentando ou ainda numa espécie de meditação guiada, onde o comando do analista desperta imagens que depois serão trabalhadas, com um objetivo específico.


Então o que é função transcendente e o que isso tem a ver com o símbolo?


A função transcendente é o resultado da união entre os conteúdos conscientes e inconscientes, sendo o símbolo vivo, a realização da integração desses aspectos contrários. Dessa forma, encontramos na via simbólica, o instrumento que nos permitirá ativar a função transcendente. É chamada transcendente, a função que possibilita a mudança essencial obtida através do confronto e da união dos opostos. Tal processo ocorre quando o eu torna-se receptivo aos conteúdos do inconsciente que se contrapõem à atitude consciente, gerando um conflito que, sustentado pelo eu que não se encontra à mercê de tais elementos, se desloca para além de si gerando um "terceiro", que media as contraposições e cria uma nova síntese resolutiva da questão emergente.


Dessa forma, as informações inconscientes poderão ser compreendidas e integradas de maneira consciente, transcendendo o conflito inicial. Imaginem que essa força vital aprisionada no inconsciente é a água e o símbolo seria a forma que vai permitir a passagem da energia psíquica de um estado para o outro, gerando assim uma metamorfose na psique. O que estava preso, está disponível como energia vital, potência.


E o sujeito reflexivo?


O sujeito reflexivo é um nome diferente para o mesmo processo. A diferença é que entendendo que esse é o movimento fundamental que provoca a evolução do Eu, Montefoschi resgata esse conceito, que não é desenvolvido e nem tão frequentemente mencionado na Psicologia Junguiana, o amplia e o coloca numa posição central no desenvolvimento de sua teoria.


O termo sujeito reflexivo, é introduzido pela primeira vez na teoria psicanalítica por Silvia Montefoschi (2020, p.198) que o define como "um plano mais alto de visão, no qual a consciência, mesmo participando da união com o inconsciente, se salva como presença." Tal fenômeno ocorre quando o indivíduo se distancia da percepção imediatista que tem de si mesmo, de seus conteúdos emocionais e do próprio conhecimento que adquiriu sobre si e “ao refletir sobre este conhecimento, descobre em si o sujeito que conhece e o objeto que é conhecido". (MONTEFOSCHI, 2020, p. 151)


Podemos assim, imaginar um triângulo. Na base do triangulo há duas forças que se contrapõem: eu e Não-Eu. Essa contraposição gera uma tensão. Essa tensão precisa ser sustentada, para isso o ego precisa se fortalecer. Assim, sendo capaz de sentir o que emerge do inconsciente, o Eu se distancia dessa tensão, não no sentido de fugir, mas no sentido de olhar para ela, sob uma nova perspectiva: “o que é isso, de onde vem, o que estou sentindo, por que estou reagindo assim?”. Assim, no momento em que o homem se desloca para o plano do sujeito reflexivo, pode reconhecer em si mesmo, não apenas aquele que conhece, como também o material subjetivo que se torna objeto de autoestudo. 


Nesse momento, um grande salto ocorre no percurso evolutivo do indivíduo, que então se vê além do sujeito do conhecimento e alcança uma nova identidade dialética que se percebe parte de um processo constante de transformação. Dessa forma, é a tensão gerada pelos conteúdos que emergem do inconsciente, observados de maneira consciente pelo Eu, que somente a partir dessa dialética entre os dois planos, pode se desdobrar num terceiro sujeito que reflete sobre as duas tendências que se apresentam: ou o Eu se abre aos conteúdos que surgiram e que ameaçam a sua integridade ou lhes nega, por assim dizer.


Que outra alternativa teria o indivíduo que chegando ao estágio onde sabe que não podendo mais sucumbir, nem fugir, poderá enfim, a partir da decisão de sustentar essa ambiguidade, criar uma nova realidade e dar um salto evolutivo que o permite ir além de seu próprio paradigma pessoal, onde a cada conflito integrado, incorpora para si novos valores.


Exemplo:


Vou utilizar um sonho que uma analisanda trouxe para sua primeira sessão. "Sabrina" me procurou, dizendo que sentia que a terapia, que fazia há dois anos havia se esgotado.


"Vejo uma mulher que não conheço me chamando, desço para um lugar subterrâneo, entendo que se trata de uma galeria de artes. Ali vejo um homem trabalhando em quadros bidimensionais, era um artista, sua função era transformar os quadros em obras Tridimensionais".


Em seu ultimo percurso terapêutico, Sabrina relatou que se sentia como numa mesa de pingue-pongue. (bidimensional) Ela falava o que pensava e mesmo sentindo que seu pensamento a enganava, era capaz de enganar a profissional, que reforçava seu processo mental de autoengano. Ela sentia, que algo estava errado e não funcionava mais. Havia estagnado. Estava convencida racionalmente de que estava bem. Mas seu peito, continha as mesmas angustias intocadas, de anos atrás.


Em análise, utilizando o sonho como uma via além da razão, observamos que: a terapia havia trabalhado superficialmente com suas crenças, auxiliando-a a pensar criticamente sobre a sua condição. Isso foi importante. Ela fez escolhas diferentes. Mas jamais, entrou em contato direto com seus sentimentos. A angústia era teorizada, mas não acolhida. A angustia que não foi convidada ao ateliê terapêutico, não foi trazida à tona.


Para evitar o confronto com o não-racional, o Ego se blinda em suas defesas. Defesas necessárias, cabe aqui, salientar. Defesas, que o analista não deve jamais, mobilizar tropas de elite a fim de ultrapassar. Quanto mais muralhas, maior a dor que ali se esconde. É preciso ir além da associação livre para perceber se esse ego já tem margens o suficiente para entrar em contato com sentimentos inconscientes. E se não tiver, precisamos construir. Só assim, teremos continente de suporte, para facilitar esse contato direto.


Esse encontro, se faz produtivo quando, desenvolvemos junto ao analisando a presença desse sujeito que reflete sobre si. Que sai da ilha, para ver a ilha. Que vê a ilha, que se sente na ilha, mas que pode se desdobrar a fim de não se afogar nos conteúdos que ali estão contidos. A carga de um complexo arrasta o ego. Se esse ego não tem respaldo e ferramentas suficientes, sucumbe à dor. Por isso, resistimos.


Se não houver um mergulho nas águas dos sentimentos inconscientes, não haverá contato. Se não houver contato, seremos sujeitos especuladores de nós mesmos. Sentir é fundamental. Mas transformar esse sentir em narrativa é igualmente fundamental. É preciso portanto, aprender a mergulhar. E ter dispositivos para subir, pois se perder nessas águas profundas é muito comum e perigoso para o Eu. Assim, cabe lembrar que: a base teórica do profissional é o chão. Ele precisa conhecer o chão que solidifica sua prática. Para promover segurança ao analisando. Todavia, se nunca foi além do chão... se aprendeu nos livros como se utiliza o equipamento de mergulho, mas nunca se atirou ao mar, não poderá conduzir ninguém, além do ponto que já experimentou em si mesmo.


A perspectiva do analista, deve promover esse triangulo dialético. Eu, o outro, a tese, a antítese. Facilitar o contato com a angustia, dando margem para que ela emerja. Sem julgar ou classificar. Sem impedir ou sabotar esse emergir de sentimentos sombrios. Isso só é possível se o próprio profissional, percorre sua jornada. Isso não é sobre preceitos teóricos, apenas.


Assim, o sonho de Sabrina, um dia antes da sua primeira sessão comigo, mostra que: havia um plano subterrâneo, além do racional. A mulher que ela conhecia, era eu (nos conhecíamos na realidade). Nesse plano, havia um homem, meu aspecto masculino. Esse animus, em mim, transformava uma arte bidimensional, em tridimensional. A dialética. A possibilidade, de sair do objeto racional e fazer-se de si, ao mesmo tempo, objeto e sujeito de si mesmo. De que forma? Através do desenvolvimento da Função transcendente, ou, do Sujeito Reflexivo, que fica à espreita em perene receptividade e se permite sentir. E desse sentir, surge algo novo. E desse novo, verdadeiramente, renascemos.


Cláudia Casavecchia

Apresentação da tese para alunos e demais formandos.

 
 
 

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